O que Michel Foucault diria se vivesse nos dias de hoje? Um tempo em que se lê e se comenta largamente 50 Tons de Cinza, mas que se escandaliza com a menor simulação de ato sexual em uma telenovela?
O romance acima citado, de autoria da escritosa inglesa Erika Leonard James, caracteriza-se como uma literatura pornográfica. Fala, sem amarras, das práticas sexuais de seus personagens e seus pormenores. O livro tornou-se rapidamente um best seller, além de ser elogiado pela crítica. O que, no entanto, o diferencia de filmes clássicos, como o Império dos Sentidos, Anticristo ou Shame, ou curtas-metragens menos conhecidos, como Pour Elle, dirigido por Blanca Li e protagonizado pela consagrada atriz Victoria Abril? O que diferencia o livro de James de filmes do conhecido - e marginalizado - cinema pornográfico?
Michel Foucault, em sua História da Sexualidade, especialmente no primeiro volume, A Vontade de Saber, discutiu que o sentimento de moralidade sexual e sua consequente normatização, figurada em uma espécie de "código de conduta", são construções históricas. Não se pensava ou praticava o sexo na Idade Média da mesma maneira que o mesmo era feito na Europa da Renascença. De forma semelhante, o higienismo e cientificismo do século XIX não deixou que este fosse feito/pensado da mesma forma que em épocas anteriores. Não se observa a sexualidade, bem como os conceitos de pornografia, nos dias de hoje, como se fazia no começo do século XX, quando uma simples sugestão da nudez feminina já seria considerado um atentado violento ao pudor. De igual forma, não se encara a sexualidade no Ocidente como a veem os indianos, que tomam o Kama Sutra como um manual da relação de um casal.
Me motivou a construção desse texto ler Foucault e pensar ou vivenciar essas questões. Muitos de nós, em fases diferentes da vida, já lemos ou assistimos a cenas pornográficas - representadas na literatura, nos quadrinhos ou no cinema - e reagimos de maneiras diferentes a isso. As reações, tomando como base algumas colocações de Peter Gay, têm base em uma educação dos sentidos. Fomos educados para apreendermos certas coisas como "corretas" ou "morais", e outras como "erradas" ou "imorais". Pautada, em grande parte, no discurso religioso, a perspectiva que vê imoralidade na representação artística do sexo cria sensações múltiplas nos leitores/expectadores. A ativação dos sentidos que tais cenas causa é confrontada com o sentimento de culpa, de punição, resultante do seu vislumbre. Acompanhado de uma curiosidade, manifesta, especialmente, nos adolescentes, surge o sentimento de repulsa a uma representação tão clara dos atos e práticas sexuais. No entanto, em muitos casos, a educação dos sentidos ajuda a formular uma educação prática, essa também construída historicamente.
Tomar as obras de arte como exemplos para tais discussões é partir de meu lugar de fala, enquanto pesquisador. Para muitos, é verdade, o cinema pornográfico não é tomado como uma obra de arte. No entanto, penso que tal questão merece um debate mais amplo. Que carga de sensações, que dramas existenciais, que conflitos psicológicos atravessam, por exemplo, a relação entre a ex-prostituta (Eiko Matsuda) e seu patrão (Tatsuya Fuji) em O Império dos Sentidos? Quem nunca se sentiu representado pela culpa de Brandon (Michael Fassbender), o personagem central de Shame? E, por mais grosseiro que possa parecer, que subjetividades atravessam as cenas dos filmes pornográficos com uma história menos elaborada?
As imagens são, também, textos. Convivem com as modalidades mais tradicionais, como os textos escritos. Tomando-a, também, como exemplo, retornamos à obra de Erika Leonard James. A autora de 50 Tons de Cinza, que conduz sua protagonista, Anastasia, pelos sinuosos caminhos do sadomasoquismo, faz com que seu texto não se dê menos ao consumidor da obra do que o que fazem os filmes acima descritos. A pergunta que emerge é: como estão, nesse momento, educados os nossos sentidos? Que historicidade os atravessa? Que sentimentos de moral, de certo e de errado, os constituem?
A humanidade viveu, ao longo de toda sua existência biológica, convivendo com o sexo. A sociedade o normatizou, o culturalizou, o historicizou. E se a arte é a maneira humana de se expressar, o sexo, como faceta de vivência, deve ser, igualmente, um objeto de representação na arte. É provável que Foucault, se estivesse entre nós ativamente, continuasse a escrever sua já extensa história da sexualidade com facetas ainda mais complexas.
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