sábado, 31 de julho de 2010
Torquato Neto - O piauiense que inventou a Tropicália
"É tão estranho... os bons morrem jovens..." Nada define melhor certas verdades do que este trecho de Love in the Afternoon, de Renato Russo. As grandes cabeças, pessoas que criaram ideias, e fizeram-nas acontecer, para revolucionar o mundo, em geral, não têm tempo de ver sua obra concluída. Nada define melhor Torquato Neto.
Pouquíssimo conhecido no circuito nacional, Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu no Piauí, em 9 de novembro de 1944. Filho de um promotor público e de uma professora primária da capital piauiense, mudou-se muito jovem para Salvador (BA), onde estudou no Colégio Nossa Senhora da Vitória, com Gilberto Gil. Neste período, o então jovem de 16 anos, era sujeito em um contexto histórico repressivo: a ditadura militar no Brasil. Com uma alma contestadora, Torquato e vários outros jovens com quem convivia começaram a participar ativamente do cenário artístico bahiense.
Em 1962, junto com amigos que viriam a se tornar os grandes nomes da música popular brasileira à época - Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia - muda-se para o Rio de Janeiro, onde sua atividade cultural torna-se mais intensa, tendo como primordial atuação cultural na Cidade Maravilhosa as publicações nos jornais Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora. Mas foi uma coluna assinada no Jornal do Brasil que fez seu nome e sua arte ganharem espaço de destaque e influenciarem diversos outros pensadores da época. Tal coluna, intitulada Geleia Geral, era um manifesto juvenil por um novo tipo de arte, uma quebra com os ideais pregados pelo governo vigente, a busca por uma literatura, música, teatro e cinema contestadores, iconoclastas e marginais.
A arte de Torquato viria a ser a precursora do que ficou conhecido no Brasil como poesia e cinema marginal. Eram poemas com estilo livre, cuja única regra eram ter regra alguma, geralmente publicados com a tecnologia de um mimeógrafo. Os filmes, por sua vez, eram aquilo que ficou conhecido, futuramente, como cinema trash, feito com câmera caseira e atores amadores, publicado em fitas sem tratamento editorial, onde a busca maior era pelo conteúdo, não pela estética.
Torquato é autor de uma gama imensa de poemas e músicas que eternizaram-se no cenário nacional. O próprio lançamento da Tropicália, a música Geleia Geral, é de sua autoria, onde canta:
O poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente cadente fagueira
No calor girassol com alegria
Na geleia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia
Ê bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
Ê bumba iê iê iê
É a mesma dança meu boi
Característica essencial em sua obra era uma implícita crítica ao regima vigente. Outros versos da mesma canção trazem, sob um olhar conotativo, tais referências:
(é a mesma dança na sala
no canecão na TV
e quem não dança não fala
assiste a tudo e se cala
não vê no meio da sala
as relíquias do Brasil:
doce mulata malvada
um elepê do Sinatra
maracujá mês de abril
santo barroco baiano
superpoder do paisano
formiplac e céu de anil
três destaques da Portela
carne seca na janela
alguém que chora por mim
um carnaval de verdade
hospitaleira amizade
brutalidade no jardim)
Sua alma contraditória fez de Torquato um poeta que vivenciava o conflito da existência. Queria conhecer quem era, e por que aqui estava. Seu poema Let's play that (uma intertextualidade com uma famosa obra de Chico Buarque) também o define:
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that
O decreto do AI-5, em 1968, levou ao exílio alguns dos maiores amigos e parceiros de composições de Torquato, como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Por um breve período, ele também, e sua esposa, Ana Maria, viveram em Londres, retornando ao Brasil no início dos anos 70. Não resistindo às pressões e inconstâncias de sua própria vida, Torquato se suicidou em 1972, no dia de seu 28º aniversário, deixando uma obra incompleta e centenas de resquícios incômodos de injustiças editoriais feitas a seu nome. Explico melhor: uma vastíssima obra da Tropicália, em especial música, foram registradas como direitos autorais de certos compositores, possuem possuam estilo e proximidade absoluta com a obra de Torquato Neto sem, portanto, estarem devidamente caracterizada como obra SUA.
Muitos definem Torquato, como poeta e como homem de seu tempo. O historiador piauiense Edwar de Alencar Castelo Branco, autor da obra Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália, assim afirma sobre ele, em um de seus artigos: "Nos poemas iniciais, o poeta aparece como um sujeito dilacerado em meio aos curto-circuitos que compõem uma realidade estilhaçada [...] e procurará se compor sujeito a partir da resistência a uma realidade que lhe dobra" (CASTELO BRANCO, E. A. Toda palavra guarda uma cilada: Torquato Neto entre a vertigem e a viagem. IN: Revista de História e Estudos Culturais, 4(4), Abril/Maio/Junho, 2007, p. 10).
A influência de sua obra é observável sobre vários autores, no Brasil e mesmo no Piauí, sua terra natal, como mostra a também historiadora Claudete Dias, ao afirmar que: "No Piauí, não foi diferente, toda uma geração cuja poesia ainda se faz ouvir nos quatro cantos do Piauí, como Ana Miranda, Kenard Kruel, Cineas Santos, William Soares, Ramsés Ramos, Chico Castro e Alcenor Candeiras Filho, tido como pioneiro na publicação de livros no sistema mimeógrafo, para citar alguns dentre outros" (DIAS, C. M. M. O Piauí que o Brasil não Vê: História, Arte e Cultura. IN: VÁRIOS AUTORES. Apontamentos para a História Cultural do Piauí. Teresina: FUNDAPI, 2003. p. 224-225).
O apaixonante personagem e seu contexto tornaram-se tema de meu pré-projeto de mestrado. Mas não só por isso venho aqui falar de Torquato Neto. Venho, principalmente, para ressaltar a figura de um personagem nacional, criador de um dos maiores movimentos culturais existentes em nosso país, e cuja memória ficou relegada, dentro dele, à de mero coadjuvante. A história de Torquato precisa ser revista. Sua obra precisa ser reanalisada. Sua alma estilhaçada precisa ser objeto de estudos, em busca de fazer jus à sua genialidade.
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Parabéns pelo post e obrigado por nos contar melhor sobre a vida e a obra desse genial artista que, com certeza, faz muita falta nos dias de hoje. Abração!
ResponderExcluir...Parabéns Fabio, a história de Torquato realmente nos encanta, uma historia de luta de um piauiense de ideias brilhantes e que nos deixou muito cedo, mas que permanece entre nos com suas obras!! Adooreiii!!
ResponderExcluirE eis que nossos maiores ídolos inevitavelmente possuem histórias de vida emocionantes. Já conhecia a participação de Torquato na criação da Tropicália, porém um dado que não sabia é que "Geleia Geral" era de sua autoria, o que certamente lhe credita por ter mesmo dado o pontapé inicial ao movimento.
ResponderExcluirObrigado pelas grandes informações. Ótimas palavras e muito conhecimento do riscado. :)
Excelente, Fábio! Parabéns por resgatar a história deste grande homem, tão pouco citado, mas de extrema importância para um dos movimentos mais expressivos da música brasileira.
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