sábado, 3 de março de 2012

"A Vida da Gente", ou Uma Parábola sobre o Afeto



Sou, como todos que frequentam esse blog devem saber, um telemaníaco incurável. Fã incondicional de novelas, já vi muitas, verei mais trocentas, gosto de vários estilos, critico e me divirto com tantos outros. Nesse emaranhado de tramas, possibilidades, formas de narrativa escolhidas pelos autores, enquadramento e trilha sonora escolhidos pelos diretores, algumas coisas, no entanto, nos tocam com uma profundidade impressionante.

A Vida da Gente, novela das 18h terminada ontem na Globo, é um desses trabalhos. A proposta de uma novela centrada "nos bastidores da família", como a apresentava a autora Lícia Manzo (oriunda da série Tudo Novo de Novo, onde já refletia a temática) em muito nos lembrava, inicialmente, o estilo de Manoel Carlos, o autor que se eternizou por suas Helenas, mães devotadas, e por suas histórias baseadas em fatos reais, emoções familiares e tramas de alcova.

Certamente, as semelhanças com Maneco são enormes. Mas Lícia Manzo conseguiu nos apresentar algo diferente, extremamente próprio, uma marca pessoal num estilo que já se imaginava estigmatizado por um autor. A dinâmica narrativa possuía um tom mais acelerado; os diálogos sempre redundavam em fatos ou sentimentos importantes no desenrolar da história (nada de "passa o sal", ou "vi uma alface baratinha no Super hoje"), o que nem de longe transformou a história em algo menos sensível. Muito pelo contrário.

A densidade apresentada pela autora centrou-se no perfil psicológico extremamente complexo dos personagens, e no trato dado às novas formatações familiares. Esses dois elementos, em conjunto, deram o tom de uma história cujo mote - a família - se ressignificava profundamente. Enquanto tinhamos Marcos, o marido que ficava em casa enquanto sua esposa a sustentava (representando, aqui, o típico Macho Beta), Dora buscava um homem sensível, que pudesse dar mais atenção e carinho à sua filha. Se Celina se aproximava dos 40 anos, e ainda não tinha um filho, seu marido, Lourenço, tinha um profundo medo da paternidade - até, por uma ambição pessoal, doar seu sêmen ao irmão, Jonas, e se tornar pai do pequeno Tiago, a quem se afeiçoa ao longo da história, e por cuja guarda passa a lutar. O mesmo Tiago, se ter o afeto dos pais de criação, se afeiçoa a Lorena, a babá, a quem vê verdadeiramente como mãe.

Para além de todas as possibilidades tratadas de se falar de família, Lícia Manzo fez de sua trama principal uma história que levou uma grande parcela de público aos píncaros da emoção. Rodrigo, Ana e Manuela, criados juntos na mesma casa, sendo o primeiro, filho de Jonas, e as duas, filhas de Eva, então vindos de casamentos passados, formam um triângulo amoroso dos mais complexos já vistos na TV em todos os tempos. Rodrigo se apaixona por Ana, e vive com ela um romance rápido e arrebatador, o que resulta na gravidez de Ana, combatida pela mãe. Contando com o apoio incondicional de Manuela, a irmã e melhor amiga, que, na tentativa de levá-la rumo a uma vida mais livre, termina se envolvendo num acidente, onde Ana entra em coma por vários anos. O remorso de Manuela cresce quando sua mãe, Eva, a acusa de ser a responsável pelo acidente da irmã. Por um amor maior que todos os outros a Ana, Manuela cria sua filha, Júlia, ao lado de Rodrigo, por quem passa a desenvolver um sentimento profundo e sólido. Esse sentimento, porém, se torna conflitante quando Ana, anos depois, desperta, e, na tentativa de retomar a própria vida, fica dividida entre o amor mal-resolvido com Rodrigo, a lealdade a Manuela e o sentimento que passa a desenvolver com Lúcio, seu médico.

Em mim, como em muitas pessoas, a trama de A Vida da Gente despertou sentimentos controversos. Mas um deles era o mais forte de todos: o final dos enlaces amorosos era algo em segundo plano. Pra mim, importava saber que as irmãs Ana e Manuela teriam seu amor e sua amizade reatadas, apesar de todas as mágoas construídas. O que se apresenta como minha forma de ver as relações. Se histórias de irmãos são meu ponto fraco, a relação de cumplicidade e transmissão de pensamento existente entre Ana e Manu se configurava como o sentimento mais forte existente naquela novela. Um laço que, apesar de ter sido danificado, jamais poderia ser rompido. E, certamente, minha cena predileta foi a reconciliação das duas irmãs.

Tudo isso me leva a pensar que A Vida da Gente foi, na verdade, uma parábola sobre o afeto. Afeto: o sentimento que é a sutura das relações familiares na atualidade, onde não necessariamente os laços sanguíneos são a coisa mais importante. Família é um ato de adoção. Irmãos, consequentemente, são construções que nascem no afeto, muito mais que no sangue. E o que existia entre Ana e Manu transcendia o fato de serem filhas de Eva, e se configurava em algo muito maior. Algo que nem mesmo os amores vividos por elas, o fato de estarem apaixonadas pelo mesmo homem, apesar de capaz de abalar, jamais poderia romper.

Meu desejo, hoje, é o de vida longa, como disse o grande Vitor de Oliveira, à Lícia da Gente! Que venham mais histórias bonitas, sensíveis, sobre os sentimentos mais nobres existentes entre as pessoas: amor, amizade, cumplicidade e afeto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário