sábado, 10 de abril de 2010

A telenovela brasileira e a redemocratização: a TV que "mostra a cara" do Brasil

Estamos em ano de eleições e, num período como esse, nada mais natural do que parar para repensar o Brasil. Ética, capacidade administrativa, sensibilidade social e crescimento são conceitos que voltam à tona todas as vezes em que candidatos lançam-se como a nova receita para um país com tantos problemas. Tudo isso são características comuns nos países democráticos, dentre os quais se incluem o Brasil. Democracia, porém, nem sempre foi uma "palavra de ordem" na política brasileira, e enfrentamos problemas como intervenção, censura, prisão política. A televisão brasileira, nas décadas de 70/80 sofreu constante censura de seus programas. Novelas como Roque Santeiro chegaram a terem sua transmissão interrompida, graças à interveção do governo federal.


Com a redemocratização do país, a mídia começou a encontrar espaços para divulgar suas próprias ideias. E a telenovela, como um dos veículos de maior comunicação às massas, não deixou de retratar a realidade de um Brasil que buscava sua identidade política em ideias que, finalmente, poderiam ganhar palanque.


Em 1988, Gilberto Braga e sua equipe entram no ar, no horário nobre da Rede Globo, com Vale Tudo. No seu mote, o conflito entre uma mãe e uma filha. Mais do mesmo? Não. Por mais janetiana que pudesse parecer, a novela nos mostrava uma abertura onde a voz doce de Gal Costa cantava a irada "Brasil", música de Cazuza, o poeta exagerado. Raquel, a mãe interpretada por Regina Duarte, batia de frente com Maria de Fátima, sua filha amoral vivida por Glória Pires, que lhe abandona em uma cidade pequena e vai embora para o Rio de Janeiro, onde conhece o mal-caráter César (Carlos Alberto Riccelli) e, usando de meios ilícitos, sobe na vida.


Um ano antes das primeiras eleições para presidente em muitos anos, o público debatia se valia a pena ser honesto no Brasil. Marco Aurélio (Reginaldo Faria) era um político corrupto que escapava impune das acusações, e ia embora dando uma banana pro país. Odete Roitmann (Beatriz Segall) era uma ricaça que odiava a terra tupiniquim. Personagens que alegorizavam a decência e a desonestidade se engalfinhavam num folhetim com todos os seus elementos, tornando-se um sucesso de público e de crítica.


No ano seguinte, a mesma Rede Globo exibiria duas novelas que apresentariam visões distintas da política brasileira. Era o ano das tão esperadas eleições. Fernando Collor de Mello, amparado pelas elites, entronizava o jovem e vigoroso "caçador de marajás", enquanto Luís Inácio Lula da Silva incorporava o operário que sonhava em chegar ao poder. Nesse contexto, enquanto às 7h da noite, via-se Que Rei Sou Eu?, às 8h se assistia O Salvador da Pátria.


A França capa-e-espada dos romances de Alexandre Dumas foram o pano de fundo para Cassiano Gabus Mendes escrever uma alegoria à política nacional. O rei de Avilan, dois anos antes da Revolução Francesa, morre, deixando o trono vazio. A rainha Valentine, tola e controlada pelo mago e conselheiro da corte, Ravengar, que consegue fazê-la colocar no trono o ignorante mendigo Pichot. Nessa história maluca, que tinha até referência aos Três Mosqueteiros, havia também o filho bastardo do rei Petrus I, de Avilan: o jovem Jean Pierre, que consegue (como bom herói) vencer seus inimigos e assumir o trono.



Podemos observar na história claras referências a personagens de nossa política: dos generais militares, controlados pela figura implícita de Golbery do Couto e Silva, aos pseudo-representantes da redemocratização, chegando, enfim, a uma suposta visão do presidenciável Collor, o jovem que, supostamente, seria a chave para o crescimento.


Enquanto isso, Lauro César Muniz escrevia O Salvador da Pátria. Nessa história, o bóia-fria Sassá Mutema, analfabeto e platonicamente apaixonado por sua professora, Clotilde, torna-se líder entre os seus e entra na política, a princípio como testa-de-ferro. Porém, a história, que previa a ascensão de um operário ao poder incomodou os grandes de Brasília, que viram nela uma clara referência a Lula. A Globo sofreu intervenção e a novela precisou ser modificada.

Sobre o caso, Lauro César contou aos jornalistas André Bernardo e Cintia Lopes, organizadores do livro de entrevistas "A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo", o processo de intervenção e modificação da novela. "A esquerda achava que o personagem fazia referência ao Lula e não gostava disso porque Sassá Mutema era apresentado inicialmente como um paspalho, um homem ingênuo. A direita, por sua vez, achava que, se Sassá evoluísse e assumisse o poder, terminaria por fazer propaganda política para o Lula. Acabei sendo bombardeado pelos dois lados".


Na época, chegou-se a comentar que a novela "elegeria o próximo presidente do Brasil". Este foi o medo, que causou grande reação no meio político. Sobre isso, ele disse: "Aconteceu que eu fui impedido de cumprir a sinopse original, e a novela acabou se reduzindo a uma trama policial".


Mas do que trataria a novela, afinal? Lauro César também conta, na entrevista:


"Segundo a sinopse original, o Sassá Mutema seria cooptado para ser candidato a vice-presidente de um candidato com ligações com o narcotráfico. Um cartel da droga ligado a Medellin tinha todo o interesse em estabelecer uma conexão no Brasil para a droga seguir mais facilmente para a Europa. O candidato a presidente, então, seria assassinado e Sassá assumiria o governo, nas mãos do grupo de narcotraficantes. A jogada era essa. Só que, durante o processo, ele toma consciência do que está acontecendo, desmantela o cartel de drogas e se torna um bom governante".

Passada a eleição e as intervenções, foi a vez de Gilberto Braga, mais uma vez, falar de política no Brasil. Após o sucesso de sua minissérie sobre a década de 50, Anos Dourados, de 1987, ele entra em 1992 com Anos Rebeldes, falando da ditadura militar no país. A minissérie contava, em seus 20 capítulos, a trajetória de jovens que protestavam contra o governo até a democratização, onde uma passeata pedia o impeachment do presidente eleito. À época, muitos consideraram que a minissérie de Braga teria incitado os jovens a formarem o movimento "cara-pintada", que viria a pedir o impechament do presidente Collor no mesmo ano.



Teria, enfim, a televisão, uma função de moderadora política, ou de formadora de opinião pública neste sentido? A resposta é: sim e não. Sim, deve ajudar a conscientizar a população sobre sua função como eleitor, mas jamais induzi-lo. A função da TV é trazer subsídios para a reflexão e a construção das próprias ideias. Mas cabe às pessoas tomarem suas próprias decisões.

5 comentários:

  1. Muito bom o seu post Fábio!!É disso que precisamos, não apenas vê a TV como um meio de manipulação,uma vilã, (no que de certa forma também é utilizada, isso não podemos ignorar), mas podemos vê-la como um meio reflexão,mas para isso temos que ter uma boa bagagem de conhecimentos que de certa forma muitos estão tendo.O brasileiro não quer mais ouvir e vê gente falando e fazendo mal para o Brasil e sair impune!!!

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  2. Bons tempos em que a tv brasileira se permitia refletir a realidade do país, e conscientizar seu povo. Destaco, além das novelas citadas, a sensacional Roda de Fogo, também de Lauro César Muniz, que colocou pela primeira vez na televisão, todas as negociatas e os grandes crimes comentidos pelos colarinhos brancos, que vivem ditando as regras por aqui.

    Parabéns, Fábio!

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  4. A quem acredite que novela é coisa de gente vazia eu particulamente não tenho o mesmo ponto de vista dessas pessoas, pois através das novelas temos a mais crua realidade brasileira, principalmente no setor político onde no Brasil é uma questão de cultura ser corrupto, o brasileiro já cresce com a idéia de que política não presta, não é que política não preste a política do Brasil é que não presta, devemos ter como exemplo de política à política de Aristóteles bem diferente de nosso cotidiano. Democracia palavra de significado belíssimo, tantos direitos temos depois que nossa constituição de 1988 foi publicada, nossa Carta Magna, uma verdadeira poesia... Parabéns Fábio pelo trabalho belíssimo.

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  5. Muito bom. As novelas antigamente tinham algo a falar. Hoje o vão cultural permite que coisas como o tal do rebolation e outras porcarias semelhantes dominem a TV e tenham sua ponta nas narrativas.

    A crise de cultura brasileira se agrava mais e mais.

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