Naquele dia ele não sabia o que fazer. Olhou pro picadeiro
iluminado, e todos olhavam para ele, esperando uma reação. Esperava aquele
sorriso marcado por maquiagem transformado em sorriso de verdade. Mas a única
coisa de verdade era aquela lágrima pintada na ponta de seu olho, que ficava
manchada pela lágrima de verdade que corria de seu olho.
Ele olhava para o trapezista. Era bonito voar debaixo da
lona. Ele queria saber um pouco mais do que aquilo. Ele queria saber mais que
as suas limitações de palhaço. Ele sonhava em saber voar por debaixo da lona,
em saber esquecer da vida nos ares, desafiando a morte.
Ele olhava para o mágico. Era bonito tirar coelhos da
cartola. Com um giro de condão fazer desaparecer a assistente. Era incrível,
encantador, assustador saber ser trancado num cofre, jogado numa tina com
tubarões... e depois reaparecer no picadeiro. Ele sonhava em saber encantar e
assustar. Em saber fazer da fumaça nascer o sonho alheio. Em saber nascer fogo
da água, cor do preto-e-branco.
Ele olhava para o domador de leões. Era fascinante ver como
ele acalmava aquele animal enorme, selvagem. Era incrível ver como ele era
respeitado, respeitando aquele bicho feroz, que era só um gatinho de tamanho
avantajado. Ele sonhava em saber domar todos os animais.
Mas ele era só um palhaço, que perambulava pelo palco,
contando piadas sem graça. Ela não sabia fazer nada além daquilo. Ele sentia
vergonha de ser tão pouco, de saber tão pouco. Ele queria saber saltar pelos
céus, voando. Ele queria saber desaparecer, virar outra coisa diferente
daquela. Ele queria ser respeitado. Ele queria ampliar seus limites. Mas ele
era só um palhaço, de ações limitadas. Ele usava uma maquiagem, e a única coisa
que sabia era fazer rir. Como fazia naquele momento, com seu choro compulsivo e
involuntário. Ninguém notava seu sofrimento, travestido de encenação. Ele era
só um palhaço de maquiagem manchada, de roupa colorida de pano barato, gasta,
de sapato maior que o pé. Ele escondia seu mundo preto-e-branco por trás de
tanta cor, otimismo e alegria. Ele era um melancólico, vejam só!
Um palhaço melancólico! Isso, aliás, é um grande
contracenso. Quando as luzes do circo se apagassem, ele virava gente, saía do
sonho. A dançarina virava uma moça que pegava ônibus. O mágico, que era dono do
circo, ia recolher o dinheiro arrecadado no dia, “talento traduzido em cédula”,
“acordes em oferta”, “poesia metamorfoseada em cifrão”, “cordel em promoção”, “música
rara em liquidação”. Tudo acabava, pra recomeçar na noite seguinte, onde o
sonho dos outros ia ser alimentado por aquela gente humana toda.
Mas e dos sonhos do palhaço, alguém se lembrava? Alguém
pensava que ele queria um abraço? Que ele sentia uma dor profunda por não saber
voar? Por não saber encantar com palavras mágicas e purpurina? Por não ser o
rei dos animais? Que aquela maquiagem manchada por uma lágrima que corria era
só uma das muitas lágrimas que ele chorava todo dia? Que ele amava a dançarina?
Não, ninguém lembrava. O palhaço está aqui só pra nos fazer rir.
Mas naquele dia ele se esqueceu de sorrir. Ele não sabia
como transformar aquele riso largo da maquiagem borrada em riso de verdade. Como
esconder que o seu nariz vermelho postiço escondia um nariz vermelho de choro? Como
dizer que aquilo tudo era só mais uma de suas encenações, e dar uma cambalhota?
Ele nem sabia dar cambalhotas. Ele era um palhaço limitado, que só sabia fazer
rir com piadas sem graça.
Na verdade, ele nem queria deixar de ser palhaço. Ele só
queria ser um palhaço que sabia um pouco mais, além de sorrir e de contar
piadas sem graça. Ele só queria aprender a rir outro riso. Mas, de repente, aquilo
tudo também era parte da encenação que ele estava fazendo, e nem ele mesmo
sabia. Quando o pano caísse, todos os outros atores o abraçariam, porque ele
desempenhou seu papel com tanta verdade, mas tanta verdade, que se esqueceu de
sorrir.
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