sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A alegoria sócio-política na literatura contemporânea




A busca por estabelecer um retrato da sociedade, na literatura, implica em vertentes diversas, que podem ser utilizadas pelos autores. Alguns procuram escrever histórias-verdade, quase uma documentação, reportagem, abordagem supra-realista dos fatos, narrando fidedignamente os acontecimentos e trazendo em seu bojo uma crítica social estampada, quase panfletária; outros, no entanto, recorrem a metáforas as mais diversas para lançar este olhar crítico, arguto, escarnecendo dos problemas da população, dos desmandos políticos, sob um véu anárquico, satírico. Assim nascem as alegorias.

Nesse texto, me ocorreu trazer duas abordagens da literatura contemporânea para retratar esta tendência literária das alegorias sociais e políticas. Em ambas, a arma é o realismo fantástico: os autores procuram no absurdo mostrar aquilo que há de mais claro, de mais real. Para isso, nossos pontos de análise serão duas obras que desnudam a realidade partindo de um ponto comum: a morte. Incidente em Antares, do brasileiro Érico Veríssimo, e As Intermitências da Morte, do português José Saramago.

Veríssimo, escritor gaúcho, famoso pela trilogia épica O Tempo e o Vento, escreveu seu último romance em 1971, auge da ditadura militar no Brasil. Este, justamente, trazia em seu conteúdo uma visão surreal de uma cidade em pé-de-guerra político. Em 1963, Antares, o palco das ações central da trama, vive a disputa política entre as famílias Campolargo e Vacariano, dois grupos tradicionais que engalfinham-se pelo poder na região, mas unem-se contra um "inimigo" comum: o comunismo. Porém, um fato no mínimo curioso ocorre na cidade: sete pessoas morrem mas não são enterradas, devido a uma greve de coveiros. Os mortos, impedindos de "descansar em paz", passam a vagar pela cidade, vasculhando a intimidade de pessoas próximas. Tudo isso com a prerrogativa de estarem mortos e, por isso, não sofrerem qualquer tipo de represália.

Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, percorreu os mais diversos caminhos no âmbito da ficção, chegando, em 2005, às Intermitências da Morte. "No dia seguinte ninguém morreu", inicia, assim, sua narrativa, onde divaga sobre a vida, a morte, o amor e o sentido da vida (ou a falta de). Em resumo, o enredo conta a história de um país fictício em que, no dia 1º de janeiro, a Morte negara-se a continuar seu "trabalho". A partir de então, encontramos uma visão do que seria um mundo sem a morte. Os paradoxos de uma sociedade que foi feito, em suma, para renovar-se constantemente, e que, muito em breve, sofreria com o inchaço, dado que ninguém mais morreria. No sétimo capítulo da obra, a Morte envia uma carta à televisão, onde anuncia seu retorno, mas impõe novas regras a ela, sendo uma delas o aviso prévio de morte, que seria dado a todas as pessoas. A humanização da Morte acontece no fim do livro, onde a carta enviada é entregue de volta ao seu remetente, e, numa visão de lirismo profundo, encontramos nela um ser feminino, carente de atenção, que deseja nada mais que ser amada.

O negar-se a morrer é uma forma, no mínimo, interessante de criticar os males da sociedade. Sendo a morte a única verdade incontestável na vida de todos, permanecer vivo - e, às vezes, contra a vontade - é um grande pano de fundo para se dizer às pessoas, aos políticos, ao mundo de uma forma geral, a insatisfação generalizada em relação à realidade. Se a "greve de coveiros" pode ser visto como uma manifestação comunista, a própria "greve da morte" é o maior de todos os protestos contra a ordem estabelecida. Eis aí, talvez, a verdadeira revolução.

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